Você não vai acreditar, mas uma lagartixinha mora no meu carro. Isso mesmo que você ouviu: no meu carro mora uma lagartixa-doméstica-tropical, também conhecida como briba, labigó, osga, tiquiri, crocodilinho de parede.
Lagartixas são amigas e se alimentam de insetos em geral. Tem formigas no meu carro, tem borboletinhas pálidas no meu carro, tem pernilongos no meu carro. Não posso imaginar que tenha baratas no meu carro – e se descobrir no meio da Marginal uma coisa dessas, largo o carro na pista central e atravesso o rio a nado.
Minha relação com lagartixas é amistosa. Minha relação com carros é estranha. Em alguma vida passada me perdi num ambiente hostil e precisei morar no carro por meses, cercada por ursos, abomináveis homens e avalanches.
Digo isso porque mantenho essa tradição: meu carro é um carro-dormitório. No porta-malas, roupas de todas as estações; uma enxada que emprestei pra mãe plantar uma primavera ano passado; garrafas vazias de água e de plástico; um presente do Natal que preciso trocar; tupperwares LIMPOS acumulados em sacolinhas; livros que pretendo há tempos doar; um pé de vários sapatos sem sola pra levar ao sapateiro… (não, não desci pra ver o que mais).
Se lavo o carro? Sim. Tá, não com a frequência necessária. Lavo quando paro em estacionamentos e acho absurdo o valor só pra ficar ali parado. Então lavo e ganho umas horas gratuitas. E digo pro rapaz que estou com umas coisinhas no porta-malas e não precisa aspirar.
Lembro que a gente brigou algumas vezes por causa de carros. Brigou porque eu falei que levaria meu cachorro comigo todos os dias e você falou que no banco de couro do Corolla não. Brigou quando eu fundi o motor do Berlingo porque não troquei o óleo na data e levei 400 kg de grama pra fazer o meu jardim. Brigou quando eu mesma coloquei litros de água no tanque de óleo da Cherokee que tinha esquentado um pouquinho. Agora eu pergunto: precisava ficar tão impaciente?
Com exceção do primeiro e deste que eu tenho, todos os outros carros foi você quem me deu. Você realizou meu sonho adolescente em ter um Karmanguia conversível original. Lindo, vermelho, mas muito conversível pra andar com um bebe-Bruna no banco de trás. E logo pra uma mãe como eu que levava no porta-malas boias de braço cheias (!) e uma corda para conseguir salvar meus filhos em caso de uma enchente repentina.
Carro não é um assunto que domino. Prefiro mil vezes que o Derek me pergunte se o urso-de-óculos é onívoro ou se o condor-dos-andes come esquilos do que me pedir pra eu pegar na sacola uma Lamborguini – e me olhar incrédulo quando trago um caminhão.
Sabe que cada filho coloca uma trilha sonora pra ouvir comigo no trânsito ? Bruna ouve Los Hermanos e Djavan; Lucca, JorgeMatheus e Frank Sinatra; Maria, Beirut e Amy. Eu gosto e o tempo passa diferente.
Apesar dessa falta de intimidade, carros me trazem lembranças absolutamente significativas. Lembro um pouco do Fusca café com leite da mãe e muito das diferentes Brasilias do Itinha. Lembro do cheiro de carro novo e de você bater o Passat vermelho na garagem.
Lembro do nosso acidente com o Opala marrom na Pedroso de Moraes. No carro, nós cinco e o Ique. Ninguém se machucou, mas lembro de escovar o cabelo e me impressionar ao caírem caquinhos de vidro. Por ter ficado tão nervoso, no dia seguinte o pai não foi trabalhar e por isso não estava na reunião no Edificio Andraus na hora do incêndio. O ditado “Deus escreve certo por linhas tortas” fez sentido.
Quando o pai estava doente – e a doença traz limitações tão difíceis – lembro que ele sentia muita falta de trabalhar e dirigir. Em um sábado à tarde, escondidos, fui com ele e com a Bruna até a Cidade Universitária e deixei ele dirigir. Primeiro inseguro, depois confortável com o cotovelo apoiado na janela, rimos da nossa grande contravenção.
Foi difícil tirar as coisas dos porta-luvas e porta-malas dos seus carros, Ita. Tinha sua agenda, seu cheiro, seus CDs. Fotos amassadas de dias felizes na praia e no Bom Motivo. Vários telefones anotados em papeizinhos. Precisavam ser tantos? Bilhetes e carros?
Sabe aquela cena da Bela Adormecida em que as fadas adormecem as pessoas do reino, pra que elas não percebessem a dor de ver a Aurora dormindo? Nos primeiros tempos, eu tinha aquela sensação do feitiço caindo em nossas vidas pra gente adormecer com você.
E todas as vezes que, durante anos, vi seus carros ali na porta de casa, parados, tive a sensação de que, enfeitiçados, eles também estavam esperando.
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol, esperando o trem, esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte, esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além que a esperança aflita, bendita, infinita…
Ainda tem um carro seu lá na porta de casa. Sujo, com os pneus no chão e decerto cheio de lagartixas. Duvida? Acorda pra ver.
Meu Deus como adoro seus textos !
Anseio pelo próximo … e ansiedade demais é ruim … um dia por vez !
Também tive um acidente na Pedroso … e frequentava o Bom Motivo …
Quem sabe todos nós já nos cruzamos ?!
Bjs à sua lagartixa de estimação !
Ps – onde fica o estepe do seu carro ?????
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O estepe deve ficar embaixo de uma montanha de coisas do porta-malas!!! Acho que estivemos por perto sim, Cinthia! Certeza que agora estamos! Bjok
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Olá Bethina, adoro seus post. Me emociona, me alegra e ao mesmo tempo entristece, pois seu do seu amor que tem pela família, sem dizer pelo Ita. Você coloca no papel todo sentimento, tudo que está dentro de você. Continue nos dando o prazer de estar lendo e sentindo todos os post. Um beijo e um especial a sua mãe, minha amiga de infância.
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Sempre que minha mãe fala de vc, fala tb o nome de todos os irmãos com M! Adoro! Obrigada pelo carinho, Marisa querida!
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Seus textos me faz viajar junto com vocês nessa história, é bom ler seus textos e isso me faz refletir um pouco na vida, nem que seja por alguns minutos… Uma ótima semana pra todos vocês e aguardo o próximo post =) Abraços!
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Ótima semana, Marcelo! Já te aguardo no próximo! Bj
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Ah Bettina, consigo fantasiar todo o texto na mente, com tamanha riqueza de detalhes, com todo o seu carinho, amor e dedicação desempenhados para escrevê-lo.
Com você, minha semana começa cheia de luz, amor e compaixão…
Obrigada por compartilhar conosco sua generosidade, maturidade e sensibilidade…
Até o próximo!!
Beijos
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Ingrid, que mensagem linda e generosa! Me emocionei! boa semana!
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Bettina, seus textos são tão honestos, tão verdadeiros!
Rezando, torcendo, e esperando com vc a hora do seu irmão acordar e podermos relembrar e comemorar as mudanças, o jeito de ser de cada um!
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Seus textos me fazem acordar. Pois, mesmo de olhos abertos, às vezes passamos pela vida dormindo e perdendo o que realmente é importante.
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Que lindo, querida! obrigada! Bj
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Bê. Que legal esse texto!! Lembro-me muito bem daquele acidente na Pedroso. Ficamos atordoados. Um beijo grande na sua bochecha!
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Beijo, primo querido! Tenho sentido sua falta virtual!
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Como gosto de ler seus textos!! Acompanho todos… Parabéns! E sempre torcendo por vocês… sempre! Bjos… Sandra
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Fico feliz, Sandra! beijo com carinho
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Bettina, você escreve tão bem!!! Conheci hoje seu blog e já comecei a devorar seus textos, eles são tão sensíveis e ao mesmos tempo tão claros e objetivos. Muito bacana essa sua ideia, estou aprendendo muito com suas histórias. Bjo
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Fico feliz, Ligia! E aprendo com sua generosidade ao me escrever! Bj
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Só hoje descobri seus textos. Estou há três horas lendo suas publicações: encantada e emocionada, sentindo-me uma aprendiz na vida. Obrigada, Bettina, Deus abençoe os seus dias e da sua família
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Encantada com sua doçura, Oneida! Muito feliz em ter você por aqui!
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saberá alguém, quais palavras devo escrever……..tentando descrever meus pensar…..minhas emoções……mas, creio que Deus….”basta uma palavra é o salvará”………….
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Que lindo, Roberto, obrigada!
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